30.4.03




minha disposição poética???

AMAR a página enquanto
CARNE numa espécie per-
versa de FODA



-- Texto de Waly Salomão.

28.4.03

Herberto Helder


Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.

Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.

Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.

Cidade que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.


-- "Em silêncio descobri essa cidade no mapa".





27.4.03

Zé Limeira


Um sujeito chegou no cais do porto
E pediu emprego de alfaiate
Misturou cinturão com abacate
E depois descobriu que estava morto
Ligou seu rádio no focinho de um porco
E afogou-se num chá de erva cidreira
Requereu um diploma de parteira
E tocou numa ópera de sinos...
Eram mãos de dezoito mil meninos
E não sei quantos pés de bananeira

Eu já cantei no Recife
Na porta do Pronto Socorro
Ganhei duzentos mil réis
Comprei duzentos cachorro
Morri no ano passado
Mas este ano eu não morro

O meu nome é Zé Limeira
Cantor que não é pilhérico
Mas já sofreu de alguns males
Foi atacado de histérico
Chame logo a junta médica
Faça o exame cadavérico

Pedro Álvares Cabral
Inventor do telefone
Começou tocar trombone
Na volta do Zé Leal
Mas como tocava mal
Arranjou dois instrumentos
Daí chegou um sargento
Querendo enrabar os três
Quem tem razão é o freguês
Diz o Novo Testamento!

-



26.4.03

A mãe que ama é a mesma que odeia foi um dos últimos ziguezagues psicológicos que meus terapeutas inventaram para me confundir, o que eles vêm fazendo com freqüência cada vez maior. Eles pensam que eu não sei que querem mais é que eu coma sabonetes para poderem mudar o meu diagnóstico a cada dia. Apesar de ser uma grande pintora, eles dizem que eu sou uma paciente que vive assaltada pela idéia delirante de ser uma grande pintora. Nestas horas perco a cabeça, mastigo bisnagas de tinta e quebro o nariz de pelo menos três auxiliares da clínica. Depois me aplicam uns eletrochoques e não sei quantos choques insulínicos. Fico com raiva de mim por ter dado tantas informações a meu respeito. Eles acham que sou uma paciente crônica e registram na minha ficha algo parecido com destruição progressiva do afeto, pensamento e memória. Pois sim, isso é o que eles pensam. Também pensam que eu não vejo os risinhos de chacota de enfermeiros e médicos ao verem que eu não largo minhas telas e até durmo abraçada com elas. Eu sei que no fundo vão dizer lá entre eles que eu estou preenchendo o vazio de minha frustração ou qualquer bobagem parecida com isso e eu quero mais é que eles se fodam porque já pedi mil vezes pincéis mas ninguém me ouve. Todos aqui dentro estão loucos para ouvir de mim que eu vejo almas mas eu não vou lhes dar este prazer. Pouco me importa que saibam que eu só vejo pincéis. Eu só vejo pincéis. E por trás deles telas, cores e planos. Dentro destes mais pincéis. Outros. De outras telas, cores e planos. Eles supõem que eu penso na morte mas o pensamento da morte não me serve de nada. Eu não vejo e não penso em nada, eu só escuto o que quero. E como eles ficam nervosos com isso. Semideuses de ambulatório barato, quem é louco aqui? Hoje é dia de acompanhamento familiar. Minha mãe entra com uma sacolinha e se senta à minha direita. Meu pai, você viu? O terapeuta diz que enquanto eu não for capaz de ser pai e mãe de mim mesma eu não terei alta. Minha mãe boceja e me passa a sacola discretamente. Abaixo os olhos e parece que ouço o caso é grave quando do embrulho salta à minha frente o mais belo jogo de pincéis que já vi na vida.

maira parula
A uma velha pobre


mascando ameixas pela
rua um saco de papel
cheio delas na mão

Elas lhe parecem saborosas
Elas lhe parecem
saborosas. Elas
lhe parecem saborosas

A gente pode ver isso
pelo jeito dela
se concentrar na fruta
meio chupada

Satisfeita
um gosto de ameixas maduras
como que enchendo o ar
Elas lhe parecem saborosas


-- William Carlos Williams

25.4.03

Quadras populares nordestinas


Duas coisa m'inquizila
Desde os tempo de rapais
Carça cum bôrso nos fundo
Palitó lascado atrais.

----------------------------------------


Vancê disse que eu sou feio,
Eu não sou tão feio assim,
Foi despois que vancê veio,
Que pegou seu feio em mim.

-

24.4.03

Marguerite Duras


A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria haver alguém, mas não é verdade não havia ninguém. A história de uma pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte, a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui falo dos períodos secretos dessa mesma juventude, das coisas que ocultei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos. Comecei a escrever num ambiente que me obrigava ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral. Hoje, muitas vezes escrever pode parecer não significar nada. Por vezes sei disto: a partir do momento em que não for, confundidas todas as coisas, ir ao sabor da vaidade e do vento, escrever é nada. A partir do momento em que não for, sempre, a confusão de todas as coisas numa única por essência inqualificável, escrever é nada mais que publicidade. Mas na maioria das vezes não tenho opinião sobre isso, vejo que todos os campos estão abertos, que não haverá mais muros, que a palavra escrita não saberá mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência fundamental não será mais respeitada, mas nem penso mais nisso.


-- Em "O Amante".

23.4.03

De teu corpo
vou cuidar e amá-lo
como um soldado, decepado de guerra,
inútil, de ninguém,
cuida de sua única perna


-- Maiakovski, em "A nuvem de calças".

Nosso trabalho vocabular


Os antigos dividiam a literatura em poesia e prosa.
Uma e outra tinham seus cânones lingüísticos.
A poesia -- seus metros açucarados (jambos e troqueus ou o vinagrete do "verso livre"), um vocabulário "poético" peculiar (corcel e não cavalo, infante e não moleque, e demais "flores-amores", "rosas-formosas") e seus temazinhos "poéticos" (antes: noite, amor; hoje: chamas, ferreiros).
A prosa -- heróis peculiarmente postiços (ele + ela + o amante -- romancistas psicológicos; o intelectual + a jovem + o guarda-civil -- romancistas de costumes; alguém de cinza + a dama desconhecida + Cristo -- simbolistas) e seu estilo literário-artístico peculiar (1. "o sol se punha atrás do morro" + amaram ou mataram = "os choupos farfalham lá fora"; 2. "vou dizer isto a você, Vaniazinho" + "o juiz da vara dos órfãos tomava da branquinha" = ainda veremos o céu coberto de diamantes; 3. "como é estranho, Adelaida Ivanovna" + ampliava-se o mistério assustador = coroado de rosas brancas).

A poesia e a prosa dos antigos estavam igualmente afastadas da fala prática, do jargão das ruas, da linguagem exata da ciência.
Nós dissipamos a velha poeira vocabular, aproveitando apenas a tralha de ferro das velharias.
Não queremos saber de nenhuma diferença entre a poesia, a prosa e a linguagem prática.
Nós conhecemos um único material da palavra e aplicamos a ele a elaboração de hoje em dia.
Trabalhamos com a organização dos sons da língua, a polifonia do ritmo, a simplificação das construções vocabulares, a precisão da expressividade linguística, a elaboração de novos processos temáticos.
Todo este trabalho não é para nós um fim em si mesmo estético, mas um laboratório para a melhor expressão dos fatos da atualidade.

-- Maiakovski,  1923.

22.4.03

Roberto Schwarz


Utopia


A festa estava animada, e já havíamos esquecido o seu pretexto. Cloé, a quem há pouco eu havia sugerido, baixando viva e indicativamente os olhos, que pusesse a mão em meu pinto, está sentada ao meu lado, zangada ainda. Mas penso que refletiu na minha proposta. Fala-se de um concerto de violoncelo que dentro em breve ela dará no Seminário B. Bartok. Sento no chão e viro-lhe as costas. Enquanto aprecio as dificuldades da situação, sigo atentamente a conversa de uns rapazes, que discutem o preço da soja. Sem mais demora escorrego a mão para dentro das saias dela, e com o dedo médio lhe procuro os pequenos lábios. Cloé, que estava parada, escutando, ficou mais parada ainda, como se fosse de pau. Mas lentamente deixou-se ficar, e começou um balanço ligeiro, como quem considera o que os outros têm a dizer. Breve o meu dedo estava quente e umedecido, e se o tirasse, estaria luzidio. Senti uma grande ternura por Cloé, e tive a certeza de ser correspondido. Neste momento, silenciosa, surpreendente como um tiro de pistola, aparecia Aurora no umbral da porta. Ela tem o segredo destas entradas quietas e vistosas, razão pela qual não a esquecerei jamais. Fiz-lhe um sinal de silêncio e com os olhos indiquei o que se passava. Ela levou a mão à boca, inclinou o corpo para trás e arregalou os seus olhos ridentes. Em seguida atravessou a sala, balançando o corpo de modo muito intencional. Estava tendo idéias. Cloé vira-se para mim e pergunta com amável petulância: "Você permite?" Pega-me pelo pulso e, afastando a minha mão, sai para passear pelo jardim. Levantei-me e cruzei com Aurora no centro da sala. "Eu quero alguma coisa no gênero", me disse ela, com um reproche no olhar. Respondi-lhe que não, que estava excitado, e que não era o dedo que eu queria lhe dar. Ela me olha com desprezo, dizendo que neste caso não interessava. É raro que duas pessoas se entendam.

-- Roberto Schwarz, 1972.

21.4.03

Kafka

Tribulação de um pai de família


Dizem alguns que a palavra odradek provém do eslavo, e procuram determinar a formação da palavra com base nesta afirmação. Já outros acreditam que ela provenha do alemão, do eslavo tendo apenas a influência. A incerteza das duas interpretações autoriza entretanto a supor que nenhuma delas acerta, mormente porque nenhuma nos leva a encontrar um sentido para a palavra.
Como é natural, ninguém se ocuparia de tais estudos se não existisse realmente um ser chamado odradek. À primeira vista, parece um carretel de linha, achatado e estreliforme, e aparenta, de fato, estar enrolado em fio; é bem verdade que os fios não serão mais do que fiapos, restos remendados ou simplesmente embaraçados de fio gasto, da mais diversa cor e espécie. Mas não se trata apenas de um carretel, pois no centro da estrela nasce uma vareta transversal, de cuja extremidade sai mais outra, em ângulo reto. Com auxílio desta segunda vareta por um lado, e de uma das pontas da estrela por outro, o todo se põe de pé, como sobre duas pernas.

Seria o caso de se acreditar que este objeto outrora tenha tido alguma finalidade, e que agora esteja apenas quebrado. Mas ao que parece, não é o que se dá; ao menos não há sinal disso; não se vê marca alguma de inserção ou de ruptura que indicasse uma coisa destas; embora sem sentido, o todo parece completo à sua maneira. Aliás, não há como dizer coisa mais exata a respeito, pois Odradek é extraordinariamente móvel e impossível de ser pego.

Ele vive alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo. Às vezes desaparece por semanas inteiras; provavelmente se muda para outras casas, mas é certo que acaba voltando à nossa. Cruzando a soleira, se ele está encostado ao corrimão, lá embaixo, às vezes dá vontade de lhe falar. Não se fazem naturalmente perguntas difíceis, ele é tratado -- já o seu tamaninho nos induz -- como uma criança. Pergunta-se "qual é o teu nome?" Ele responde, "Odradek". "E onde você mora?" Ele responde, "residência indeterminada", e ri. Mas é uma risada como só sem pulmões se produz. Soa, quem sabe, como o cochicho de folhas caídas. De hábito este é o fim da conversa. Mesmo essas respostas, aliás, não é sempre que se obtém; em geral ele fica mudo por um longo tempo, como a madeira que aparenta ser.
Inutilmente eu me pergunto, o que será dele? É possível que ele morra? Tudo o que morre teve, anteriormente, uma espécie de finalidade, uma espécie de atividade, na qual se desgastou. Não é o que se passa com Odradek. Será então que no futuro, quem sabe se diante dos pés dos meus filhos, e filhos dos meus filhos, ele ainda rolará pelas escadas, arrastando os seus fiapos? Evidentemente ele não faz mal a ninguém, mas a idéia de que, além de tudo, ele me sobreviva, para mim é quase dolorosa.

-- Kafka

20.4.03

Mishima



Quando repasso atentamente minha infância, me dou conta de que minha memória das palavras começa muito antes da minha memória da carne. Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da linguagem. No meu caso, antes vieram palavras. Depois -- pé ante pé, com toda a aparência de extrema relutância e já vestida de conceitos -- veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas palavras.
Primeiro vem o pilar de madeira pura, depois os cupins que o comem. No meu caso, os cupins já estavam lá desde o começo, e o pilar de madeira pura só emergiu mais tarde, já meio carcomido.
O leitor que não me censure por comparar minha atividade com a do cupim. Em sua essência, qualquer arte que se baseie em palavras faz uso do poder que elas têm de carcomer -- sua função corrosiva -- assim como gravar em metal depende do poder corrosivo do ácido nítrico. Mas o paralelo ainda não está exato o bastante: o cobre e o ácido nítrico usados na gravação estão de acordo entre si, os dois oriundos da natureza.
A relação entre as palavras e a realidade não é a mesma que existe entre o ácido e a placa de metal. Palavras são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e em seu poder de corroer a realidade inevitavelmente insinua-se o perigo de que as próprias palavras também sejam corroídas. Melhor, na verdade, comparar sua ação com o excesso de sucos estomacais que digerem e, pouco a pouco, acabam por carcomer o próprio estômago.
Muitos expressarão sua descrença em que tal processo pudesse já estar em ação nos verdes anos primeiros anos de uma pessoa. Mas foi isso, sem sombra de dúvida, que me aconteceu, lançando as bases para duas tendências contraditórias que batalham dentro de mim. Uma, a gana de levar em frente, com lealdade, a função corrosiva das palavras, e disso fazer a obra da minha vida. A outra, o desejo de me encontrar com a realidade em algum ponto onde as palavras não tivessem nenhum papel a desempenhar.


-- Yukio Mishima, em "Sol e Aço".

19.4.03

Oswald de Andrade


Serafim saiu só pela noite de Jerusalém. Era a rua principal em descida. Penetrou nas luzes do Café Bristol. A sala abafada coloria-se de papel no jazz idiota. Um pianista saracoteava nulamente entre garçons e cadeiras vazias. Havia sírios gordos, homens vagos do Sul, caixeiros, viajantes bêbados e duas alemãzinhas globe-trotters. Um ar de inocência iluminava aquela blasfêmia que um cachorro enorme vigiava. No interior do bar um rei mago tingia um cocktail.
Nosso herói saiu pelo vento. Em cima fazia uma lua paulista. Passou os armazéns, o Hotel Allemby, um café turco. De repente a noite crenelada dos cruzados gritou quem vens lá! A Torre Antônia velava sobre a lama dos quarteirões. Havia sombras de guardas ao lado dos degraus de um portão. Serafim aproximou-se. Eram dois soldados curdos. Perguntou-lhes pelo Santo Sepulcro.
-- Não há nenhum Santo Sepulcro...
-- Como?
-- Nunca houve.
-- E Cristo?
-- Quem?
O outro esclareceu:
-- Cristo nasceu na Bahia.


-- Oswald de Andrade, em "Serafim Ponte Grande".

15.4.03

Eu tenho um fraquinho por ti
tu não me dás atenção
tu não me passas cartão
quando me ponho a teu lado
tremo nervoso de agrado
e meto os pés pelas mãos
tu vais gozando um bocado
a beber vinho tostão
eu com o discurso engasgado
fico a um canto, que arrelia
de toda a cervejaria
onde vais rasgar a noite
se te olho com ternura
olhas-me do alto da burra
que mais parece um açoite
é um susto um arrepio
que me malha em ferro frio.

Eu tenho um fraquinho por ti
que me vai de lés a lés
tu dás-me sempre com os pés
quando me atiro enamorado
num estilo desajeitado
disfarço em bagaço e café
tu fumas o teu cruzado
e fazes troça, pois é,
já tenho o caldo entornado
esqueces-me da noite p´ro dia
em alegre companhia
de batidas e rodadas
tu ficas nas sete quintas
marimbas, estás-te nas tintas
p´ra que eu ande às três pancadas
basta um toque sedutor
eu cá sou um pinga-amor.

Eu tenho um fraquinho por ti
que me abrasa o coração
quase me arrasa a razão
a tua risada rasteira
põe-me de rastos, à beira
do enfarte da congestão
encharco-me em chá de cidreira
mofas de mim atiras-te ao chão
zombando à tua maneira
lá fazes a despedida
ao grupo que vai de saída
dos amigos da Trindade
mas no fim da noite, à noitinha,
tu ficas triste e sozinha
à procura de amizade
e como é costume teu
chamas o parvo que sou eu.

Afino uma voz de tenor
ensaio um ar duro de macho
quando estás na mó de baixo
quero ver-te arrependida
mas numa manobra atrevida
rufia, muito mansinha,
dás-me um beijo e uma turrinha
que me põe num molho num cacho
estremeço com pele de galinha
e gosto de ti trapaceira
da tua piada certeira
do teu aparte final
do teu jeito irreverente
do teu aspecto contente
do teu modo bestial
noutra palavra mais quente
eu tenho um fraquinho por ti.


-- Fausto Bordalo Dias, "Tenho um fraquinho por ti".

Bocage

Ao Parnasso quer subir
Novo rival de Camões,
E das loucas pretensões
As musas se põem a rir.
Apolo, sem se afligir,
Responde logo ao casmurro:
-- Pode entrar que eu não o empurro,
Nem isso me causa abalo:
Eu cá sustento um cavalo,
Sustentarei mais um burro.


-- Bocage, em sátira a um autor consagrado.

14.4.03

VEM, QUE ESTOU PARA TAS DAR


Vem, que estou para tas dar,
chega-te, vida, que morro,
necessito de socorro,
não me queiras acabar:
estou já para estalar,
não me ajudas, por quem sou?
que para tas dar estou:
pois que é isto? tanto tardas?
acaba, vida, que aguardas?
Dá-mas, Mana, que tas dou.

Meu coração, que me abraso,
morro com tão lindo gosto,
que em perigo me tem posto
gosto de tão lindo vaso:
vê, que se vem passo a passo
estas lágrimas chegando:
dize, meu bem, para quando,
hão de ser? olha, que vem:
acaba, dá-mas, meu bem,
Que tas estou esperando.

Acrescenta o excessivo,
para o gosto acrescentar,
não queiras, vida, matar,
a quem morre, estando vivo:
e se em modo tão esquivo
o gosto sempre se apouca,
por que seja igual a troca,
que fazemos neste caso,
pois tens o membro no vaso,
Mete-me a língua na boca.

Hás, pois, vida, de advertir,
que em modo tão sublimado
se acha menos desmaiado,
quem mais se deixa dormir:
para mais tempo sentir,
o que estamos trabalhando,
quisera, vida, que quando
me canso para tas dar,
nunca quisera acabar,
Enquanto tas estou dando.


-- Gregório de Matos

10.4.03

IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA


Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
-- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais! --

Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

-- Augusto dos Anjos

OS RESTOS


Os restos do cavalo. Os restos da amazona.
Os restos do avião. Os restos da aeromoça.
Os restos do perfume. Os restos da putain.
Os restos do pincel. Os restos da colagem.
Os restos do gargalo. Os restos da garganta.
Os restos de Brasília. Os restos de Granada.
Os restos do artesão. Os restos da cadeira.
Os restos do oceano. Os restos da lagosta.
Os restos do ascensor. Os restos da cidade.
Os restos do jornal. Os restos do repórter.
Os restos do nazismo. Os restos da opressão.

Os resistentes renitentes insistentes
impertinentes restos do nazismo da crueldade e da opressão
dispersos pelo mundo sob nomes diversos, até sob o nome da liberdade:
quando sumirão? quando se consumirão?
Fechou-se uma inquisição, abriram-se outras, ahimè!
Os restos, os restos vivos e ativos. Os restos.

-- Murilo Mendes

9.4.03

Mallarmé





A Meia-Noite



Certamente subsiste uma presença de Meia-Noite. A hora não desapareceu por um espelho, não está oculta em tapeçarias, a evocar um mobiliado mediante sua vazia sonoridade. Recordo-me que seu ouro dissimularia na ausência uma joia nula de fantasia, rica e inútil sobrevivência, ou que, na complexidade marinha e estelar de uma ourivesaria, ler-se-ia o infinito azar das conjunções.

Revelador da Meia-Noite, ele jamais indicou tal conjuntura, pois aqui está a única hora por ele criada; e que do Infinito se apartem as constelações e o mar que permanecem, exteriormente, recíprocos nadas para permitir que sua essência, à hora una, crie o presente absoluto das coisas. E da Meia-Noite perdura a presença, na visão de um compartimento do tempo, cujo misterioso mobiliado detém um vago frêmito de pensamento, luminoso rebate do retorno de suas ondas e de seu primeiro espalhar-se, enquanto se imobiliza (num limite movediço) o local anterior da queda da hora numa calmaria narcótica de eu puro há muito sonhado; mas cujo tempo se transforma nas tapeçarias sobre as quais se detém, completando-as com seu esplendor, o frêmito amortecido, em olvido, como uma lânguida cabeleira em torno da face clareada de mistério, aos olhos nulos, semelhantes ao espelho, do visitante despojado de toda significação que não seja presença.

É o sonho puro de uma Meia-Noite, em si desaparecida, e cuja reconhecida claridade, que permanece solitária no seio de sua consumação mergulhada na sombra, resume sua esterilidade na palidez de um livro aberto, exposto pela mesa; página e cenário triviais da Noite, a não ser que ainda subsistisse o silêncio de uma antiga palavra proferida por ela e, a qual retornada, essa Meia-Noite evocasse sua sombra consumida e anulada por estas palavras: "Eu era a hora que me há de tornar puro."

Morta havia muito, uma antiga ideia se contempla como se fora a claridade da quimera na qual agonizou seu sonho e se reconhecesse no vago gesto imemorial com o qual se convida a extirpar o antagonismo desse sonho polar, a restituir-se com a claridade quimérica e o texto que se fecha no Caos da sombra malograda e da palavra que absoluta a Meia-Noite.

Inútil, o mobiliado consumado que se dissolverá em trevas como as tapeçarias, já imersa numa forma fixa de sempre, enquanto que, clarão virtual -- produzido pela própria aparição no reflexo da obscuridade, cintila o fogo puro do diamante do relógio, única sobrevivência e joia da Noite Eterna, a hora se formula nesse eco, ao limiar dos telões abertos para o seu ato da Noite. "Adeus, noite que fui, teu próprio sepulcro, porém que, sombra sobrevivente, se metamorfoseará em Eternidade."

-- Mallarmé, em "Igitur" (tradução de José Lino Grünewald).

8.4.03

Rihaku

A mulher do mercador do rio: uma carta


No tempo em que meu cabelo caía reto sobre minha testa,
Eu brincava ao pé do portão da frente, colhendo flores.
Vínheis então montado em pernas de bambu, brincando de
cavalo
Ou caminháveis em torno de meu assento, brincando com
ameixas azuis.
Assim íamos vivendo na aldeia de Chokan:
Dois pequeninos seres, sem rancor nem suspeita.

Aos quatorze desposei Meu Senhor, Vós.
Rir é que nunca pude, pois sou tímida.
Baixando a cabeça, contemplava a parede.
Ao chamarem por mim -- mil vezes -- nunca olhei para trás.

Aos quinze parei de firgir-me zangada
E desejei que meu pó se misturasse ao vosso
Para sempre e para sempre e para sempre.
Para que haveria de subir ao mirante?

Aos dezesseis viajastes
Fostes para a longínqua Ku-to-yen, à beira do rio dos
remoinhos,
Cinco meses já vão que estais ausente.
Doloroso é o barulho dos macacos lá em cima.

Arrastastes os pés quando partistes.
Ao pé do portão, agora, cresceu musgo, diversas espécies de
musgo,
Enraizados demais para que se possa arrancá-los!
As folhas caem cedo este ano, com o vento.
As borboletas aos pares já estão amarelas de agosto
Por cima da grama no jardim do poente.
Elas me magoam. Estou ficando mais velha.
Se voltardes pelos estreitos do rio Kiang,
Mandai-me dizer a tempo
E viajarei o mais longe que possa a vosso encontro
Pelo menos até à altura
De Cho-fu-sa.


-- Rihaku (tradução do chinês de Ezra Pound, e do inglês, de Mário Faustino).

4.4.03

Leminski

O conto democratizou a literatura no Brasil.
É o volkswagen dos gêneros, aquele que pôs a classe média sobre quatro rodas.
Com o triunfo do conto, todos podem pensar em ser escritores, entrar na literatura, ingressar nessa carreira com mais passado que futuro.
A poesia é muito rara, muito difícil, muito sacrificada.
O romance é muito longo, exige capacidade de orquestração, domínio do todo e das partes, fôlego de mergulhador, paciência de beneditino, coisas difíceis de encontrar por aí.
O conto é a solução.
Contar uma história é a maneira mais óbvia de estruturar um texto.
Mas há um infinito de maneiras.
Por que preferir o óbvio ao infinito?
O nascente e crescente público consumidor de textos não-práticos assim o quer.
O tempo anda tão caro e tão escasso, para que complicar a vida das pessoas?
Entendo que muitas coisas estejam se passando sob as espécies de conto: política, conquistas de linguagem, ampliação de mercado.
Mas acredito, com Décio Pignatari, que, no conto, interessa o que não é conto.
Interessa o que é outra coisa: signo, violação, flagrante delito.
A fordiana produção em série de contos obedecendo a uma mesma programação (com variantes insignificantes) que vemos hoje deverá crescer até o processo produzir, por extrema redundância, contradição interna e arrebentar em nova síntese, imediatamente canonizada como a nova ordem.
Fundamental o papel que o conto está desempenhando no sentido de firmar o nome de escritores brasileiros, movimentar o mercado editorial e livreiro.
Nesse sentido, o conto merece o que está acontecendo com ele: está em vias de se transformar em sinônimo de literatura, no Brasil.
Calculo que, para cada vinte novos contistas que surgem, surge um poeta.
Vocações para romancista também são mais raras.
Mas essa nossa emergente prosa de ficção apresenta nível de redundância e banalidade estrutural só comparável ao do soneto no passado.
O conto é o soneto de hoje.
O soneto também foi veículo cômodo e portátil para divulgar e generalizar a prática e o consumo da poesia.
Afora isso, está sendo muito pequeno o contributo do conto para o progresso do texto de imaginação entre nós.
Nossa prosa não aguenta confronto com os latino-americanos, mais atrevidos na concepção e na realização, mais surpreendentes, mais corajosos na inovação.
E a vida, que vocês tanto falam?
Quem escreve como se escrevia há vinte anos atrás sai de livros de literatura, não da vida. Inovar! Aprendam com a vida, que é a mãe inesgotável de processos, formas e estruturas.
Parte da resistência da inteligência letrada ao nosso estado de coisas está se fazendo sob a pele do conto.
Pena que essa resistência se dê, na maior parte, através de conteúdos muito previsíveis, por intermédio de recursos, soluções e efeitos herdados passivamente e não questionados.
Quase não se vê ninguém nas trincheiras da linguagem.
E a cerração da redundância torna mais escura esta noite que sabe Deus quanto tempo ainda temos que sofrer.


-- Paulo Leminski, em depoimento à revista Escrita, 1979.

Rolf Dieter Brinkmann


Mais uma vez



Minha mulher,
apoiada em uma
perna, nua,

a outra
perna apoiada
na
beirada da

banheira,
quer
saber que
horas são

eu vejo
a pequena
mancha de pêlos

entre seus
músculos
para ela
um lugar como
outro qualquer
para lavar
e penso
por que não

enquanto ela
volta a
perguntar, nua,

e troca
a perna de apoio.


(trad. MP)

3.4.03

Walter Benjamin


Omelete de Amoras


Esta velha história, conto-a àqueles que agora gostariam de experimentar figos ou Falerno, o borscht ou uma comida camponesa de Capri. Era uma vez um rei que chamava de seu todo poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava mais melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: "Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e tens me servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de teu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinqüenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos então, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga quando, por fim, topamos com uma choupana. Ali morava uma vovozinha que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão, e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer." Então o cozinheiro disse: "Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que o batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro." Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes.

-- Em Imagens do Pensamento.

2.4.03

Caetano Veloso


Cremúsculo. O sol, a só, despe de si, digo, despede-se, desce pé ante pele, descalço, dá-se e sobe, digo, sob, ou melhor, sobre as bandas cremoças das mulheres alfíssimas do hemisferno nhorte. Kolinas sonrisam no horizonte. Mastros desdesenham-se no ocidonte. Acapulcos e havaís tampouco. Tranquislidade. Moite. Não há dúvida: é chagada a hera dos maiares desgrossos. Não há dúdiva: ele virá, sentará de pé sobre a poldrona enfernizada onde tandos senturam e ferá o seu elequante discorso: sua eterna dádiva; nossa eterna dívida. Assim pressunto trudo que já estrá aquantessendo encuanto camino por las calles de esta casa grande mansão da minha hotess. Sua majestade, sua desclarada, sua cachorra de minha adolescênica, por que nunca me declaraste nenhum amor enquanto eu era virgem e voraz? Eres una pública. Y yo te quiero, yo te quiero... Mas como eu ia rizendo: alguns mastrodantes circruzavam pela prehisteria na hora da ave maria. Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor, despertando no meu coração as saudades do primeiro amor. Um gemido e se esvai lá no espaço nesta hora de lenta agonia quando o sino saudoso murmura badaladas apropriadas. Braçal, ano dos maus. Brastel, amo dos meus. Passou o ano dos gols. Bravil, anda com ferro e gurgulho a terra onde Maciste, criança, enfrentou João Lúcio Godar: não verás nenhum Paris como este. Olha que shell, que mer, querida, que forgets! Papo furado. Acordar tarde demais é que é fogo. A mulher que eu amo realmente me disse que eu acordasse mais cedo um pouco. Ao crepúsculo é demais. Fossa na certa. Merci bocu. O bandeide da luz vermelha rides again. Qualquer negócio. Hoje em dia, minha filha, tanto faz como tanto fez. Entretanto não adianta resposta. Há dias em que adias tudo. Ou: há dias tudo. ADIO GRINGO! Here comes the sun king. Ringo, João, Paulo e Jorge. Ringo nunca foi santo... João houve dois e agora há, pelo menos 23. Paulo parlava molto. Jorge adaptou-se tão bem aos pegís brasileiros que o Vaticano despediu-o. Eis tudo o que sei sobre religião, perguntarão. E jamais saberão. E nunca sabão. E nem são. E não. Hão? Rima rica do meu verso, minha canção preferida, melodia do meu samba, vida da minha própria vida.

-- Em "Não Verás um Paris Como Este", 1969.